A neblina emcobria os dois amigos que cortavam a estrada de piçarra montados em suas bicicletas. À direita de ambos, a Mata do Junco acordava com seu tom sereno, como quem guardava a paz, como quem guardava toda a história do lugar. O frio da madrugada envolvia aqueles dois, que só tinham a prosa pra despertar
Zé Líbano e Zé Biriba faziam aquele caminho todos os dias, com exceção da segunda, que era dia de feira na cidade. Eram vizinhos de roça e pedalavam por uns vinte minutos até chegar ao Povoado Boa Vista, onde tinham os seus pequenos sítios.
De terça a domingo era o mesmo batido, acordavam às quatro da manhã, saíam da cidade de Capela onde deixavam suas esposas e seguiam para cuidar da plantação de mandioca, milho e feijão. Nessa jornada não havia pressa e conversava-se sobre tudo, pois cada dia era um tema diferente.
Naquele dia debatia-se sobre a safra da cana-de-açúcar, que naquele ano trouxera prejuízos para os pequenos produtores que forneciam para as usinas. Muitos tomaram prejuízo, mas eles se consideravam vitoriosos, pois não abandonaram as suas plantações para plantar a cana.
Zé Líbano falava: - Você acha que eu sou besta de cair na conversa de usineiro; acabar com minha plantação pra plantar cana?. - Eu me lembro quando Seu Jorge (dono da usina) veio me mostrar os cálculos, dizendo que era mais vantagem plantar cana do que criar gado; disse até que Seu Euzéquio tava acabando com cem tarefas de pasto pra plantar cana! - Ai de mim se caísse na conversa, hoje estava aí, esperando a boa vontade da usina pra moer as minhas canas e dar o preço que quiser.
Zé Biriba também comentava: - Pois é Zé Libano, Seu Jorge veio me procurar também, mas eu já sou macaco velho e resolvi continuar plantando o meu feijão, a minha mandioca. Pelo menos faço a minha farinha e o dinheiro dá pra passar; quando o negócio aperta, trabalho uns dia no sítio de seu Izaque, vendo uma manga ou uma jaca na feira do Carmo (Carmópolis) e assim eu vou vivendo. Se tivesse plantado cana tinha que comprar o feijão e a farinha e ainda tava tomando prejuízo.
Os dois proseavam, já haviam passado pela Lagoa Seca e pelo Estreito. Quando já estavam próximo à Boa Vista passaram na frente da casa de "Moqueca", amigo em comum de ambos desde a infância e que era viciado em cachaça limpa. Em frente à casa de moqueca havia um cavalo branco muito bonito que chamou a atenção de ambos.
O cavalo estava amarrado na coluna da varanda da casa e já estava arreado com uma sela australiana, manta com pelo de carneiro, cabeçada de rédea grossa, um cavalo de exposição.
Aquela cena chamou a atenção de ambos; afinal, queriam saber que visita importante havia desembarcado na casa de "Moqueca" áquela hora da manhã. Zé Biriba desceu da bicicleta e já foi logo averbando: - Amimal não se amarra em coluna de casa não; depois o bicho se assusta e arrasta a coluna de uma puchada só!. Desamarrou o cabresto e amarrou o animal debaixo de uma árvore.
Enquanto Zé Biriba amarrava o cavalo, Zé Libano saiu em direção ao fundo da casa e encontrou "Moqueca", que estava com uma cara de ressaca. Na verdade, "Moqueca" havia se acordado e estava fazendo a higiene bucal com palhinha, bebida alcólica verde com sabor de menta.
Zé Libano achou aquilo estranho, pois já tinha visto o amigo beber cachaça às primeiras horas da manhã, mas ficou surpreso com aquela performance. Então falou: -" Moqueca", seu fi da peste, você quer morrer desgraçado! "Moqueca" respondeu: - Num tô ingulindo não rapaz, é só pra refrescar.
"Moqueca" gargarejou e logo após cospiu a bebida. Nesse momento, Zé Biriba chegou e perguntou: - Ô "Moqueca", quem é que está aí em sua casa? "Moqueca" respondeu: - Ninguém. Zé Biriba indagou: -E de quem é esse animal que tava amarrado aí na coluna?. "Moqueca" disse: -É meu.
Zé Libano, sem dar muita credibilidade e em tom de deboche fez a seguinte pergunta: - Como assim rapaz, ganhou na mega sena ou ganhou o cavalo de presente? "Moqueca" respondeu: - nenhum dos dois, troquei por esta malhada.
Zé Libano sabia que "Moqueca" era vaidoso e já tinha feito muita besteira na vida. Era vaqueiro dos bons, já havia trabalhado em muitas fazendas do sertão; corria vaqueijada, corrida de argola, chegou a ganhar três motos como prêmio, mas gastou o dinheiro com cachaça e mulheres.
Além de vaqueiro, amansava cavalos, mas a sua vaidade impedia que se fixasse em qualquer fazenda, nem com mulher alguma. Não respeitava ninguém; se não gostasse do patrão largava o serviço,mesmo se tivesse de carteira assinada.
Toda rapariga que arranjava mandava o seu filho de cinco anos anotar o nome em uma caderneta, o que era um motivo de orgulho para ele, que já tinha mandado anotar o nome de mais de cinquenta mulheres.
Moqueca era desmantelado, mas Zé Libano e Zé Biriba não acreditavam que seria capaz de trocar a sua única casa por um cavalo. Onde iria morar com sua esposa e seu filho?
Mesmo duvidando, Zé Biriba queria saber detalhes do negócio e perguntou: - "Moqueca", com quem você fez essa troca; você tem que entregar quando a casa?" Moqueca" respondeu: - eu fiz negócio com "Manezinho Trocador", meu vizinho. Ele tava querendo aumentar o sítio dele e plantar mais cana, aí me perguntou por quanto eu vendia a malhada. Como ele tinha esse cavalo eu fiz a proposta e ele aceitou, aí nós fizemos o negócio sábado, já passamo o negócio no Cartório e vou entregar a casa hoje, que ele já vai passar o trator no terreno.
Nesse momento, "Zezinho Tratorista" passava na porta da malhada de "Moqueca" e gritava: - ô "Moqueca", daqui pra dez horas eu tô chegando com manezinho trocador pra passar o trator!
Daí em diante a certeza tomou conta da conversa. Mas Zé Libano não se conformava: - Rapaz, como é que você trocou a sua casa, a sua malhada de três tarefas por um cavalo? Onde é que você vai dormir, debaixo do cavalo? "Moqueca" parecia confiante e consciente do seu negócio e falou: - É rapaz, paixão é fogo né, o cara apaixonado por cavalo é a peste mermo. - Mas eu fiz um bom negócio, tô com um cavalo bom. - É verdade que fiquei sem a casa, mas tenho uma boa notícia: - minha mulher me largou quando soube do negócio e foi pra casa da mãe junto com o filho. - Agora tô livre.
Depois dessa resposta Zé Biriba e Zé Libano desistiram. Despediram-se de Moqueca e seguiram pela Rodagem em direção às suas roças, mas continuaram a prosa que iniciaram na Capela.
As perguntas, porém, ainda pairavam no ar: onde moqueca iria criar o seu cavalo, se já não tinha malhada?. Como iria manter o cavalo? Só moqueca, o grande negociante, poderia responder.
Apenas posso afirmar que aquela troca de Moqueca gerou motivo pra fofoca naquele pacato povoado, onde os moradores até hoje se perguntam se "Moqueca" vai estender uma rede nas pernas do cavalo e dormir debaixo do animal.
Aracaju, 11 de março de 2010
Gonçalo Ribeiro de Melo Neto
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